Uma imagem de Malines
Uma imagem de Malines, emoldurada por flores exóticas, originárias da África de Sul, as estrelícias. Ambas, pela sua elegância, demonstram bem o gosto artístico dos coleccionadores portugueses. Completam-se na sua exuberância e serenidade.
Embora sem policromia, não deixa de nos enternecer a sua expressão calma e doce. A cara redonda, juvenil, de testa alta e larga e nariz pequeno, afilado, enquadram-na nas Poupées de Malines. Os cabelos, bem definidos pela punção da goiva, caem-lhe em madeixas justapostas e ondulantes, pelas costas e à frente. Na cabeça tem uma coifa, formada por uma tira de pano, torcida em espiral com enfiadas de pérolas intercaladas.
Por vezes, estas imagens mostram a coifa cortada, porque lhes foram apostas, posteriormente, coroas de prata.
Pelas suas reduzidas dimensões e graciosidade do seu porte, eram objecto de culto em conventos, capelas e casas particulares, nos pequenos oratórios para os quais pareciam ter sido especialmente esculpidas.
A partir dos finais do século XIV, mas com grande incidência no XV, assiste-se a uma forte importação de peças de arte flamengas. O intercâmbio comercial com a Flandres intensifica-se, principalmente após a chegada à Índia e a introdução do cultivo da cana-de-açúcar, na Madeira. Os barcos, carregados com as especiarias e o açúcar, traziam, na torna viagem, as peças de arte flamenga, que abasteciam o mercado de luxo e davam prestígio aos encomendantes, fossem eles nobres, comerciantes ou a própria Casa Real. É o império do gosto flamengo, onde a escultura e a pintura estavam em primazia.
Genericamente conhecidas por imagens flamengas, as oficinas onde eram produzidas centravam-se em Malines, Bruxelas e Antuérpia. Embora de produção oficinal em série, a sua qualidade e valor estético, quer na escultura, quer nas madeiras em que eram talhadas, contribuíram para difundir, entre a sociedade aristocrática, o gosto pela arte flamenga.
Na sua difusão e conhecimento, entre nós teve papel preponderante a feitoria da Flandres, "entreposto de tráfico comercial e financeiro, centro diplomático e, também, agência para a aquisição de toda a espécie de obras de arte, jóias, móveis, pergaminhos, livros, tapeçarias e vestuário para a família real"1,criada em 1499, por D. Manuel I. Os feitores tinham que ser verdadeiros connaisseurs para corresponderem às exigentes expectativas de todos aqueles que, como encomendantes, confiavam no seu bom gosto e discernimento.
Apesar da produção abundante e das suas características semelhantes - forma achatada, ausência de escultura e pintura nas costas, silhueta revelando uma leve posição em S, policromia rica -, as oficinas e os respectivos santeiros diferenciavam-se pelo requinte e modelação das peças, nunca surgindo imagens iguais.
Imagem com 37cm de altura e a que falta a peanha original. O restauro a que foi submetida, que presumivelmente lhe retirou atributos específicos, dificulta uma identificação isenta de dúvidas. O livro, que segura, sugere uma Santa Catarina (?), mas a ausência de outros atributos próprios - a torre onde foi encarcerada, a roda do seu martírio e a figura do rei mouro a seus pés - suscita interrogações e incertezas. Tal falta não afecta, porém, o seu valor intrínseco. Com efeito, o requinte dos panejamentos, com as pregas quebradas e angulosas, o prender do manto e, principalmente, a sua silhueta elegante e sinuosa, de cintura alta, cingida por um corpete que termina num decote trapezoidal, demonstram um esculpido conhecedor e virtuoso, sugerindo uma grande experiência oficinal.
Agradeço ao seu proprietário a disponibilidade desta magnífica escultura. Adquirida no mercado de Madrid, o seu certificado qualifica-a como uma imagem quinhentista, representando Santa Catarina.
1- Bernardo Ferrão de Tavares e Távora "Imagens de Malines em Portugal", Porto, 1975, pág.33