domingo, 30 de março de 2014

Uma imagem de Malines

Uma imagem de Malines




Uma imagem de Malines, emoldurada por flores exóticas, originárias da África de Sul, as estrelícias. Ambas, pela sua elegância, demonstram bem o gosto artístico dos coleccionadores portugueses. Completam-se na sua exuberância e serenidade.   



Embora sem policromia, não deixa de nos enternecer a sua expressão calma e doce.  A cara redonda, juvenil, de testa alta e larga e nariz pequeno, afilado, enquadram-na nas Poupées de Malines. Os cabelos, bem definidos pela punção da goiva, caem-lhe em madeixas justapostas e ondulantes, pelas costas e à frente. Na cabeça tem uma coifa, formada por uma tira de pano, torcida em espiral com enfiadas de pérolas intercaladas.


Por vezes, estas imagens mostram a coifa cortada, porque lhes foram  apostas, posteriormente,  coroas de prata. 
Pelas suas reduzidas dimensões e graciosidade do seu porte, eram objecto de culto em conventos, capelas e casas particulares, nos pequenos oratórios  para os quais pareciam ter sido especialmente esculpidas.
A partir dos finais do século XIV, mas com grande incidência no XV, assiste-se a uma forte importação de peças de arte flamengas. O intercâmbio comercial com a Flandres intensifica-se, principalmente após a chegada à Índia e a introdução do cultivo da cana-de-açúcar, na Madeira. Os barcos, carregados com as especiarias e o açúcar, traziam, na torna viagem, as peças de arte flamenga, que abasteciam o mercado de luxo e davam prestígio aos encomendantes, fossem eles nobres, comerciantes ou a própria Casa Real. É o império do gosto flamengo, onde a escultura e a pintura estavam em primazia.
Genericamente conhecidas por imagens flamengas, as oficinas onde eram produzidas centravam-se em Malines, Bruxelas e Antuérpia. Embora de produção oficinal em série, a sua qualidade e valor estético, quer na escultura, quer nas madeiras em que eram talhadas, contribuíram para difundir, entre a sociedade aristocrática, o gosto pela arte flamenga.
Na sua difusão e conhecimento, entre nós teve papel preponderante a feitoria da Flandres, "entreposto de tráfico comercial e financeiro, centro diplomático e, também, agência para a aquisição de toda a espécie de obras de arte, jóias, móveis, pergaminhos, livros, tapeçarias e vestuário para a família real"1,criada em 1499, por D. Manuel I. Os feitores tinham que ser verdadeiros connaisseurs para corresponderem às exigentes expectativas de  todos aqueles que, como encomendantes,  confiavam no seu bom gosto e discernimento. 
Apesar da produção abundante e das suas características semelhantes - forma achatada, ausência de escultura  e pintura nas costas, silhueta revelando uma leve posição em S, policromia rica -, as oficinas e os respectivos santeiros diferenciavam-se pelo requinte e modelação das peças, nunca surgindo imagens iguais.





Imagem com 37cm de altura  e a que falta a peanha original. O restauro a que foi submetida, que presumivelmente lhe retirou atributos específicos, dificulta uma identificação isenta de dúvidas. O livro, que segura, sugere uma Santa Catarina (?), mas a ausência de outros atributos próprios - a torre onde foi encarcerada, a roda do seu martírio e a figura do rei mouro a seus pés - suscita interrogações e incertezas. Tal falta não afecta, porém, o seu valor intrínseco. Com efeito, o requinte dos panejamentos, com as pregas quebradas e angulosas, o prender do manto e, principalmente, a sua silhueta elegante e sinuosa, de cintura alta, cingida por um corpete que termina num decote trapezoidal, demonstram um esculpido conhecedor e  virtuoso, sugerindo uma grande experiência oficinal. 
Agradeço ao seu proprietário a disponibilidade desta magnífica escultura. Adquirida no mercado de Madrid, o seu certificado qualifica-a como uma imagem quinhentista, representando Santa Catarina. 

1- Bernardo Ferrão de Tavares e Távora "Imagens de Malines em Portugal", Porto, 1975, pág.33


terça-feira, 18 de março de 2014

A Kermesse da Tapada da Ajuda, 1884

A Kermesse da Tapada da Ajuda, 1884

Nos dias 17,18 e 19 de Maio de 1884, realizou-se em Lisboa, na Real Tapada da Ajuda, por iniciativa e vontade da Rainha D. Maria Pia, uma grandiosa e magnífica  quermesse, com o fim de angariar fundos para a Associação das Creches.

Panorâmica da Real Tapada da Ajuda,
  in Revista Ocidente, Nº 196, 1 de Junho de 1884
A obra das Creches nasceu em França, por acção do advogado e filantropo Jean Marbeau. Atento às difíceis condições em que viviam os filhos do operariado fabril, iniciou o movimento de criação de locais onde as mães os pudessem deixar, enquanto trabalhavam. O primeiro estabelecimento deste género instalou-se em Paris, em Novembro de 1844.
Esse movimento propagou-se a outros países, entre os quais Portugal. No ano de 1875, nasceu, por diligências de D. Isabel de Sousa Botelho, a "Associação das Creches". Profundamente empenhada nesta obra, a rainha D. Maria Pia "desempenhou um papel essencial no impulso dado a estas novas instituições, apoiando-as financeiramente"1. Fundou a " Creche Victor Manuel ", assim denominada em honra de seu Pai, o rei Victor Manuel de Itália. 

Creche Victor Manuel
(Imagem retirada da internet)

Construída em terrenos da Tapada da Ajuda, foi dotada com"todas as roupas e mobiliário precisos e o fundo inicial de 3.000$000 reis em inscrições"2. Muitas foram as creches instituídas ao longo do país, para, com a sua acção benemérita, prestarem assistência às crianças.
De um modo geral, estes estabelecimentos subsistiam graças à generosidade de particulares e, muitas vezes, pela realização de festas, saraus, bazares e récitas.
Estas acções deviam-se, na maioria das vezes, à iniciativa das elites, pois iam "ao encontro dos novos hábitos de sociabilidade desenvolvidos pela burguesia oitocentista"3. Tal foi o caso da Quermesse de que se dá notícia.


Colecção particular

Uma comissão de honra, da qual faziam parte as mais destacadas figuras da sociedade de então, presidida pela rainha, orientou a organização dos trabalhos. Todos, entusiasmados com a ideia, queriam participar: oferecendo prendas e brindes, escrevendo loas, textos e poemas, arrematando simples flores por quantias significativas, oferecendo os seus préstimos e serviços.




A edição do Diário Ilustrado, de 17 de Junho de 1884, foi inteiramente dedicada à Kermesse. Para além de múltiplas notícias e de diversos artigos e poemas, pode ler-se: " Sua Magestade venderá flores na sua barraca para esse fim destinada, e na outra as sortes dos prémios offerecidos ás Creches. Para esta barraca Sua Magestade convidou algumas das senhoras de Commissão, e vários cavalheiros da nossa primeira sociedade "4.
O pavilhão da rainha, rústico mas elegante, foi decorado pelos jardineiros do Palácio da Ajuda. Aí se vendiam graciosos bouquets, quer de flores naturais, quer artificiais.
Muitas outras barracas se estendiam pelos terrenos da Tapada. Tudo se vendia: bolos parisienses, frutas, prendas, publicações editadas propositadamente para a ocasião. Todos queriam adquirir, nem que fosse uma simples flor, para auxiliar a obra das Creches.


A Creche
 (imagem retirada da internet)

Várias obras se publicaram de propósito para a efeméride. Entre elas, um pequeno jornal, intitulado "A Creche", número único, do qual se editaram cinco mil exemplares.

Carta de David Corazzi

Desses cinco mil números, três mil cento e setenta e sete exemplares foram vendidos durante os três dias em que decorreu a kermesse. Setecentos números seguiram para o Rio de Janeiro e cem para a Baia, no Brasil. Os restantes mil e vinte e três foram vendidos em Portugal. Nele colaboraram escritores e poetas, tendo a receita obtida com a sua venda, no valor de 1.392.970 réis, revertido a favor da Associação das Creches.


1/3- Irene Vaquinhas " As quermesses como uma forma específica de sociabilidade no século XIX. O caso da Quermesse da Tapada da Ajuda, em 1884", Revista Biblos, Vol.LXXII, 1996, pág.281.
2 -Mário Costa "Uma Quermesse de Caridade na Real Tapada da Ajuda", Lisboa, 1959, pág.42.
4 - Diário Ilustrado, 17 de Maio de 1884.





quinta-feira, 6 de março de 2014

Azulejos Devesas numa fachada lisboeta


Azulejos das Devesas



Na Rua Miguel Lupi, em Lisboa, perdura uma fachada lisboeta com sabor a Norte. Felizmente para nós,os azulejos que revestem este prédio, de produção da Fábrica das Devesas, encontram-se em muito bom estado de conservação.
Este costume, de revestir com azulejos as fachadas dos prédios, entronca (?) nas apelidadas "casas de brasileiros", pois foi no "Brasil que esta prática se desenvolveu e consolidou"1, motivada pela necessidade de uma maior resistência à erosão provocada pelas agruras do clima tropical, abundante de chuvas e de calor. Esses palacetes encontram-se nas zonas mais a norte (Minho e Beiras), num indicativo gosto de opulência, plenos de detalhes exóticos, que enriquecem, ainda hoje, paisagens rurais e urbanas.
Partiram na pobreza e regressaram na riqueza. O seu novo estatuto inseria-se num sentimento burguês de afirmação pelo trabalho, reflectindo a preocupação de exibir o sucesso alcançado em terras estranhas. Materializavam-no  nas suas casas, cobertas de belas fachadas de azulejos, construídas nas terras de onde eram oriundos e, por vezes, na cidade do Porto.
Esta nova tendência, de azulejar as fachadas, ultrapassando o tradicional uso de revestir com esse material apenas o interior das casas - entradas, escadarias, jardins e outras áreas privadas -, enraizada com especial incidência no Norte vai alargar-se a outras regiões e também a Lisboa. Aqui, as fachadas de azulejos coincidem com a expansão da cidade para os novos bairros, entre os quais se inclui o da Lapa, onde se situa o prédio cuja frontaria levou a escrever este texto.
Com o aumento das encomendas, quer  para o Brasil, quer em Portugal, as fábricas adaptam-se a novas técnicas de fabrico, abandonando a produção manual e passando a uma semi-industrial. Tal aconteceu com a  Fábrica das Devesas.




A fim de publicitar os produtos, editavam-se catálogos, como foi o caso deste, da Fábrica das Devesas, de 1910.  De um desses catálogos- constam os azulejos que ornamentam a fachada de um prédio da Rua Miguel Lupi, em Lisboa. Sendo uma das maiores unidades fabris de finais do século XIX, início do XX, os seus  azulejos podem, ainda hoje, ser apreciados em algumas frontarias de prédios de Norte a Sul do país.







Neste edifício, de dois pisos, observa-se a conjugação perfeita entre os diversos materiais utilizados na sua construção, que caracterizaram a arquitectura de finais do século XIX e início do XX: pedra, ferro e barro. As suas linhas elegantes  distribuem-se por dois pisos, separados por uma linha definida por cantarias, onde pontuam quatro elegantes varandas de ferro forjado. Ao centro, a porta (ainda das antigas, felizmente) está encimada por um arco de volta perfeita, em pedra.
Toda a fachada está revestida de azulejos formando um padrão geométrico seriado, enquadrados por friso em forma de fita grega. Com a advento da Arte Nova, passaram a usar-se frisos ornamentais, de uma policromia quente, que rematavam de forma criativa as composições de azulejos, apresentando "flores de grandes dimensões ou densamente agrupadas, com cores rutilantes, associadas a outros elementos vegetais, numa das afirmações mais originais e marcantes da azulejaria do início do século XX"2. É o que podemos observar nos pequenos painéis que se intercalam entre as janelas, onde malmequeres brancos sobressaem do intrincado movimento dos seus filamentos.


1- "Azulejos de Fachada em LISBOA-II". Lisboa, revista municipal, Ano XLIV, 2ª Série, Nº4, 2º Trimestre de 1983.
2 - José Meco, "O Azulejo em Portugal", Publicações Alfa, 1989, pág.155.