segunda-feira, 21 de julho de 2014

Um gato ... ratinho







Belíssima palangana, de dimensões invulgares - 36,7 cm -, rica nas cores e no tema: um imponente, mas pachorrento, gato, que nos olha, de modo felino e intrigante, do meio das plumas que o rodeiam.
Com ele está associada uma discussão/debate recorrente: Gato ou mocho? Mocho ou gato?
Se bem observarmos e atentarmos nos pormenores: olhos amendoados, orelhas ponteagudas, bigodes numa cara arredondada; patas bem assentes, tudo nos aponta para esta fera doméstica. 
O modelo poderia bem ser o exemplar tigrado que habitasse a casa do oleiro e  gostasse de se passear pela oficina.
O pintor, num rasgo de originalidade, captou-lhe a expressão e registou-a, qual fotografia, no covo da peça.
Conferiu-lhe um ar vanguardista - talvez com alguma influência de Picasso -, com elementos fisionómicos desacertados e não coincidentes. Qual janela bem florida, enquadra-se numa moldura formada por duas plumas de pavão que, partindo da base, sobem pela aba e se unem no topo. Pinceladas intensas e cheias, numa alternância de tons verdes, azuis e amarelo ocre, demonstram a mestria do artista. Um traço forte, neste último tom, realça o conjunto.



Produzido numa qualquer oficina anónima, das muitas que existiam na cidade de Coimbra, saiu das mãos, também anónimas, de um artesão. Utilizou-se a pasta mais pobre e grosseira, a que primeiro se acumulava nos barreiros e era usada para confeccionar  as "faianças mais ordinárias a que se dá o nome de ratinhas"1.
Dado que era uma faiança destinada às camadas populares, de menores recursos económicos, a aplicação apressada e menos cuidada do vidrado estanífero não foi bem sucedida.  Daí apresentar deficiências - zonas de chacota expostas - demonstrativas de uma colocação desatenta, como se pode ver na imagem.








PCV, Leilão 201, Outubro 2008, pág.125
Uma outra palangana com 35,5 cm de diâmetro, também representando um gato, sentado numa posição pouco comum. Apesar da ingenuidade dos traços a envolvente florida confere-lhe realce e alguma graça.

Estes dois exemplares integram a categoria da decoração zoomórfica da Faiança Ratinha. Nesta, as espécies mais figuradas foram as aves e os peixes. Outros animais, como é o caso destes gatos, são mais raros. Outros, ainda, como cães, cavalos, ovelhas, etc., complementam o esquema organizativo, enriquecendo o motivo central.


1 - Charles Lepierre -"Estudo Chímico e Tecnológico sobre a Cerâmica Portuguesa Moderna", Lisboa,Boletim do Trabalho Industrial, 1912, pág.119.
Catálogo do Palácio do Correio Velho, Leilão nº 201, Outubro de 2008, lote nº 227





segunda-feira, 14 de julho de 2014

Uma flor...uma bonita flor






Uma flor
Uma pequena flor,
Eu colhi
Estava a pensar em ti
(...)
Entre Aspas, "Edelweiss", 1997



Uma flor... Uma flor oferecida...  Uma flor para a enamorada...

Um original prato de faiança coimbrã, provável produção de Brioso - precursora da Faiança Ratinha-, demonstrativo da ingénua fantasia do oleiro que o executou. Ornamentação sui generis, com um par amoroso, em que o homem oferece uma flor, num gesto enamorado, em que transparece a sua afeição pela formosa (?) dama.
O par, trajando à moda de finais do século XVIII, ele de calção, meia branca e casaco cintado, ela de saia e sobressaia, com anquinhas e um decote muito pronunciado e malicioso, mostra uma certa incongruência nas formas. A mulher, mais alta, ocupa metade do covo, estendendo-se para a aba. Podemos pressupor que deve ter sido delineada em primeiro lugar, pelo espaço mais reduzido  que o seu par ocupa. A fim de obstar à sua menor estatura, o pintor teve que altear a base onde ambos assentam, a fim de que as suas faces  ficassem ao mesmo nível visual. É interessante o facto de os corpos se encontrarem de frente para os espectadores, mas as caras se apresentarem de perfil. Numa composição bicromática, unicamente nos tons azul cobalto e manganés, conseguiu-se uma decoração rica de pormenores, mas ingénua nos seus traços gerais. Uma ornamentação formada por pequenas cartelas, cheias com filamentos cruzados, enriquece a aba.





A designação "Brioso" provém de um ceramista oleiro de Coimbra, António da Costa Brioso,  identificado nos finais do século XIX, por António Augusto Gonçalves. A produção de Coimbra, de finais do século XVIII, de melhor qualidade era, genericamente, atribuída a Vandelli. Porém, no momento em que se descobriu uma pequena travessa, datada e assinada "Brioso, 1779", as dúvidas desfizeram-se: a manufactura de Brioso antecedia, em cinco anos, a fundação da fábrica de Vandelli. 
Ironizando - e contribuindo, também, para dilucidar a situação Brioso/Vandelli -, é de evocar o seguinte trecho, escrito por uma das freiras mais novas do Mosteiro de Lorvão, D. Inês Benedita, aquando de um infeliz acidente, em que um bule, tido em grande estima pela sua possuidora, se quebrou:  "Não foi, senhora, no distante clima da China, ordinária pátria dos bules, que nasceu o meu herói; Coimbra, esta lusa Athenas de Portugal, lhe serviu de berço, e para que nascesse logo com avultados brios, contam os historiadores que foi Brioso o seu augusto projenitor. Brioso, este homem, que despresou a aliança com a illma. fabrica de Vandelli, que o pretendeu para consorte, e só achou a exma sra D. Olaria digna esposa a seus altos merecimentos, sendo inumeravel a descendência que deu a todo o reino e fora d'ele. Foi sempre o ellmo sr. D. Bule de Barros (de quem choramos hoje a perda), o filho mais dilecto do seu coração, vendo-se desde a infância tão melindroso como vidrento e fazendo biquinho a tudo quanto via. Ele receia embarca-lo para a América ou expô-lo nas lojas à censura do publico"1.





1 - Charles Lepierre "Ceramica Portuguesa Moderna", Lisboa, 1899, págs: 235 e 236.
Alexandre Pais, António Pacheco, João Coroado "Cerâmica de Coimbra", Edições Inapa, 2007
"Estudo sobre o Estado Actual da Industria Cerâmica", Lisboa, Imprensa Nacional, 1905.