sexta-feira, 31 de julho de 2015

Memórias ...







Arquitectos Baltazar de Castro e João Vaz Martins
Década de quarenta, século XX

Memórias!
São imagens que,  agrupadas nos álbuns de fotografias, contam histórias e relembram outras.
Há alguns dias, ao passar no Largo da Estefânia e ver as ruínas do que foi um centro de pequenas oficinas,  vieram-me à memória as manhãs de domingo. Foi um ritual que se cumpriu durante alguns anos, aqueles que mediaram entre os meus seis e oito anos. O meu Pai levava-nos, a mim e aos meus irmãos, a uma garagem/oficina para mandar lavar o carro. Enquanto esperávamos, íamos a uma pastelaria perto, comer um bolo. Muitas dessas manhãs reunia-se connosco o arquitecto Baltazar de Castro,  que trabalhava com o meu pai nos Monumentos Nacionais. Era uma figura sui generis. Distraído até mais não! Pedia um café que vinha num daqueles copos de vidro e encaixava num suporte  de cortiça para não queimar a mão. Vertido o açúcar, mexia, lenta e concentradamente com a colher, tilintando, mas... do lado de fora da chávena. Eram momentos de glorioso riso, sufocado para não explodir em gargalhadas. A sua figura típica, com a boina basca colocada de lado, a voz nasalada, e distraidamente mexendo o seu café que continuava áspero e amargo, pois o açúcar formava uma pasta no fundo da chávena. De repente, dando conta da sua distracção, encolhia os ombros e colocava a colher dentro da chávena.
Era daquelas pessoas que enriquecem quem as conhece.
As fotografias, que estou a tentar organizar, revelam momentos de convivência, quando os dois, ele e o meu Pai, viajavam pelo país para a  verificação das obras de restauro em curso.




Nasceu em Maio de 1891, na aldeia de Painzela, no concelho de Cabeceiras de Basto. Desde sempre vocacionado para a arquitectura e para as artes, vai desenvolver a sua carreira profissional ligado aos Monumentos Nacionais. Em 1936 é nomeado Director da Direcção dos Monumentos Nacionais, cargo que ocupa até 1948. Aposenta-se em 1955, como arquitecto inspector superior do Conselho de Obras Públicas.
Profundamente ligado ao restauro do património arquitectónico português, balizado entre 1920 e 1955, a sua acção desenvolveu-se um pouco por todo o país, prioritariamente  no Norte, alargando a sua acção interventiva também às ilhas atlânticas e Índia Portuguesa. Ficou particularmente associado ao restauro de edifícios religiosos e militares medievais. Por via desta vertente, deslocou-se a Espanha, a fim de estudar monumentos românicos e visigóticos da mesma época. Entre outros, as igrejas pré-românicas de São Pedro de Lourosa, de S. Frutuoso de Montélios e de São Pedro de Balsemão.


Arquitectos Vaz Martins e Baltazar de Castro
 Castelo de Vide

Arquitectos Vaz Martins, Baltazar de Castro e outros técnicos
Levada da Encumeada, Madeira


Arquitectos Vaz Martins e Baltazar de Castro
Local desconhecido




sexta-feira, 17 de julho de 2015

Uma Nossa Senhora de Malines





Terna Mãe que segura o seu Filho nos braços.
O tema mariano foi dos mais inspiradores para os artesãos das oficinas de Malines. Conhecem-se bastantes imagens que representam Nossa Senhora com o Menino. Para além desta representação, foram também esculpidas muitas outras, como a Pietá, Santa Ana, a Virgem ou unicamente o Menino. Estas figuras destinavam-se, de um modo geral, a estar expostas em altares individuais, muitos deles de devoção privada. Regra geral não são imagens de vulto pleno, isto é, que possam ser vistas em todas as posições, pois não são esculpidas na totalidade, nomeadamente nas costas. Contrariamente, as imagens de vulto parcial, expostas nos oratórios privados, estavam destinadas a ser olhadas unicamente de frente.
Esta imagem tem o Menino ao colo, do lado direito. A túnica cai em pregas sobre o corpo, deixando as pernas à vista. Envolve-o um rosário, a que faltam algumas contas e a cruz. A Senhora segura-o com carinho e devoção. Mostra uma indumentária tradicional, cuidada, com o usual decote quadrado. O manto cai em pregas, que se vão quebrando de modo natural. Revela um rosto sereno e testa alta, como era costume neste tipo de imagens. O cabelo entrançado deveria ter estado preso numa coifa. Estas peças, tidas em grande apreço pela sua graciosidade e beleza, foram sendo alvo de pinturas e arranjos posteriores, mais de acordo com as noções estéticas em vigor e também com a vontade dos seus possuidores. A coifa tradicional, de tecido entretecido com fiadas de pérolas,  foi substituída por uma coroa, possivelmente de prata. Para tal tornou-se necessário proceder a adaptações: a coifa desapareceu para dar lugar a uma zona onde fosse possível encaixar a coroa.



N.Srª. do Rosário
MNAA Inv.1350

Imagem proveniente da antiga colecção do comandante Vilhena que integra, actualmente, o acervo do MNAA. O Menino tem sobre os ombros um rosário. A policromia já não é a original. Refeita por várias vezes,  confere à imagem uma volumetria maior, escondendo a leveza da escultura. Mais tarde, foi-lhe aditada uma placa com uma cercadura de contas e flores em harmonia com o rosário que ornamenta o Menino.
Estas peças, originárias da Flandres, eram produzidas em três grandes centros: Malines, Bruxelas e Antuérpia. A influência da arte flamenga que já se sentia e imperava nos reinos ibéricos desde o século XV, vai alcançar o seu apogeu no século seguinte, quando as rotas comerciais, principalmente a  do açúcar, conhecem um grande desenvolvimento.
Nas principais cidades do Brabante existia uma próspera e produtiva indústria de retábulos, esculturas e pinturas que eram exportadas para a Europa, chegando às ilhas atlânticas da Madeira, Açores e Canárias. Devido ao comércio florescente, quer do açúcar, quer das especiarias, muitos comerciantes flamengos vêm estabelecer-se nessas novas zonas, com eles trazendo o gosto e devoções artísticas que, rapidamente, são absorvidas pela sociedade local. Daí a existência de tantas peças flamengas ou ao gosto flamengo que ainda se podem encontrar nos museus e em colecções particulares.
Para salientar a importância dada à arte flamenga foi,entre Dezembro de 2004 e Julho de 2005, decidido promover um congresso de especialistas com vista a proceder à sua divulgação. O mesmo ocorreu em Lisboa. Para além disso realizou-se uma exposição que reuniu peças existentes nas Ilhas Canárias completada com muitas outras provenientes de colecções belgas, portuguesas e espanholas.
Essa exposição esteve patente em Madrid, Bélgica e Santa Cruz de Palma.




Catálogo, pág. 73

Feitas para os encomendantes, fossem eles o rei, a igreja, particulares ou mesmo comerciantes, apresentavam muita qualidade. Transportadas nas embarcações na tornaviagem, abasteciam o mercado peninsular e insular, ávido de novidades e de exibir o seu recente poder económico. A resposta a  este intercâmbio artístico e cultural é feita de modo inédito para a época: a criação de oficinas especializadas neste tipo de obras de arte.  Malgré a sua execução em série, as peças tinham qualidade artística e a sua originalidade excluía-as de um carácter mais popular. Eram sujeitas ao exame do júri dos mesteres  e autenticadas com as marcas  próprias de cada centro produtor, podendo assim atribuir-se-lhes uma origem. No caso de Malines eram apostas, nas costas, por punção, as três barras, alusivas ao brasão da cidade.





"Ao modo da Flandres.Disponibilidade,Inovação e Mercado da Arte (1415-1580)". Actas do Congresso Internacional Celebrado na Reitoria da Universidade de Lisboa, Abril de 2005.
Catálogo da Exposição "El Fruto de la Fe. El Legado Artístico de Flandres en la Isla de La Palma".
Willy Godenne "Préliminaires à l'inventaire général des statuettes d'origine malinoise présumées des XV et XVI siècles"
"O Brilho do Norte". Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa, 1997.