sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Ratinhos mais modernos






Mais um duo de ratinhos. Desta vez com uma ornamentação mais avant-garde, estilizada quer no formato, quer  na disposição decorativa.
A mesma arca, já aqui mostrada diversas vezes, representa o casamento perfeito para qualquer tipo de faiança. Traz memórias de ranchos, de criados (desculpem a palavra, mas era a que se usava em casa dos meus avós, uma casa agrícola na qual trabalhavam homens e mulheres). Em pratos grandes, mas de esmalte, eram servidas as refeições, em comunidade. Agrupados à volta da mesa, cada um com o seu garfo de três dentes, em ferro, retirava calmamente a comida que, de seguida, molhava  no prato ao lado.
Não sei dizer porquê, mas aquela refeição, aos meus olhos e dos meus primos, sabia melhor comparativamente à que tinha sido servida à mesa. As arcas serviam para guardar as fornadas de pão que se coziam quinzenalmente. Trigo e centeio, este último escuro, mas com um sabor tão próprio, que ainda hoje perdura no paladar.
Extravasei o tema.



Exemplares já mais avançados no tempo, talvez das primeiras décadas do século XX, mas com  características decorativas dos ratinhos, observáveis na cercadura e no apontamento da pluma de pavão. Coloridos, tons ricos de azuis e verdes, mostram flores, únicas, que dominam e captam o nosso olhar.



A flor, esguia e elegante, espraia-se pelo covo, numa conjugação perfeita com os esponjados presentes na aba. O pintor, sabedor do seu ofício, rapidamente delineou uma flor que avulta ao centro, rodeada de folhas e flores em botão.




Este prato, palangana pelas dimensões, apresenta também uma flor única, enquadrada pelas folhas e demais folhagem. Policromia exuberante, forte, em que sobressaem os zuis e os verdes. Centralmente domina o amarelo ocre, tão do gosto dos artesãos conimbricenses. Ao cimo, quase que a esconder-se, a pluma de pavão, de raízes orientalizantes e uma das marcas da Faiança Ratinha.
Num artigo saído no jornal Público, de 3 de Fevereiro de 1998, a sua autora Luísa Soares de Oliveira diz que "com a cerâmica ratinha, estamos com toda a certeza perante a adaptação mais genuína dos padrões orientais, que séculos antes tinham já influenciado a azulejaria e a cerâmica europeias".

Este post é dirigido a todos os que apreciam esta faiança que acalma o olhar e enriquece  a alma.









segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Natal 2017







Presépio de linho.
Nossa Senhora segura o Menino  nos seus braços, sob o olhar enternecido de S. José.
Um Bom Natal, pleno de saúde e paz.




sábado, 28 de outubro de 2017

Ana e Mateus ...os Meninos Gordos



Ana e Mateus, seu irmão, eram naturais do Piemonte, Itália, onde nasceram na primeira metade do século XIX. Por serem anormalmente obesos, inseriam-se na categoria de "curiosidades". Uma vez apresentados à corte do Piemonte, a partir daí iniciam uma digressão pelas diversas cortes europeias, chegando a Portugal no ano de 1842. 
Sendo uma forma de fazer dinheiro, graças à sua extraordinária obesidade, percorreram o nosso país, "tendo sido mostrados nas vilas e cidades por onde foram passando, em salas de espectáculo improvisadas"1. 
Para que o público acorresse a ver estas crianças, os promotores dos espectáculos recorriam à publicidade, imprimindo prospectos com imagens e descrição das crianças em causa.


2


Mateus e Ana Perrera   percorreram algumas localidades do norte - Porto, Braga e Guimarães - tendo como seu empresário o Sr. Teixeira, que os apresentava em espaços improvisados, a preços convidativos e num horário alargado, que conviesse a todos.
Nas gravuras e folhetos que circulavam, eram retratados ambos de saias. Ana diferenciava-se pelo cabelo e por ter uma boneca nas mãos. Seu irmão, Mateus, "mostrava uma espécie de suspensório enviesado e colocado sobre o seu ombro direito"3.

Por serem diferentes, eram recordados e motivo de conversas nos serões e entardeceres, originando histórias que se perpetuaram na memória de muitos. Uma dessas memórias chegou até aos nossos dias na faiança portuguesa. Sempre foi do gosto dos ceramistas a reprodução de datas  e factos marcantes da nossa história e vida social. Os Meninos Gordos são disso exemplo. "O prato com os Meninos Gordos contava, narrava um acontecimento que se conhecia e outros conheciam, ou de que, pelo menos, tinham ouvido falar"4.



Assim sendo, os artesãos reproduziram largamente as imagens dos Meninos, quer porque os tenham visto ao vivo, quer por terem tido acesso às gravuras que circulavam entre as pessoas. Vários tipos de peças foram produzidas - pratos, canecas e paliteiros - sendo os primeiros os que restaram em maior quantidade, talvez  porque muitos desses pratos só serviam em ocasiões especiais.



                  




Relativamente à cronologia, podemos concluir que estas peças foram produzidas seguramente a partir de 1842-43, até um período bem mais dilatado de cerca de quarenta anos, dado que as figurações, continuavam em uso durante mais alguns anos. 
Quanto aos centros de fabrico, com segurança, podemos atribuir a sua produção à fábricas do norte, principalmente as existentes em Gaia e Viana. As características evidenciadas por esta última são fáceis de imputar. Distinguir as fábricas gaienses é problemático, dadas as semelhanças que apresentam entre si. São elas Bandeira, Fervença, e Afurada.


Bandeira(?)

Localizada no Largo do Mártir Sebastião, laborou desde a década de vinte até finais do século XIX.
Vive principalmente da sua decoração vistosa, policromia viva e forte e das suas cercaduras totalmente preenchidas com recurso à técnica da estampilha, sendo evidente o horror ao vazio.


Fervença (?)

Fundada em 1824 por Manuel Nunes da Cunha, situava-se no lugar de Fervença, perto do convento da Serra do Pilar. Produziu faiança de boa qualidade, rica em policromia. Entre as peças que lhe estão  atribuídas, destaca-se um prato todo em azuis, com uma aba decorada por estampilhagem, onde sobressai uma faixa formada por porcos.

Afurada (?)

Esta fábrica surgiu em 1789, no lugar do Lazareto, Gaia, fundada por Joaquim Ribeiro dos Santos. Fechada durante o período das Invasões Francesas, vai conhecer um período conturbado, passando pela mão de vários proprietários. O prato mostra uma decoração menos vistosa e com espaços mais livres e uma cercadura polícroma, executada à mão livre.


Viana 


Situada na margem esquerda do rio Lima,  fronteira à cidade de Viana do Castelo, a fábrica de Viana exportava grande parte das suas peças
 para o Brasil e Galiza. A produção dos pratos dos Meninos Gordos pertence ao terceiro período (1790-1820) de laboração da fábrica, caracterizada por uma decoração mais pobre, de composições simples e estampilhada.
Revela uma aba encordoada com perfil ondulado.

Este texto teve como suporte o livro "Meninos Gordos Faiança Portuguesa", de Isabel Maria Fernandes.Porto, Civilização Editora, 2005.

1 - Isabel Maria Fernandes " Meninos Gordos Faiança Portuguesa", pág.7.
2 - Isabel Maria Fernandes " Meninos Gordos Faiança Portuguesa", pág.8.
3 - Isabel Maria Fernandes " Meninos Gordos Faiança Portuguesa", pág.16.
4 - Isabel Maria Fernandes " Meninos Gordos Faiança Portuguesa", pág.23.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Miragaia II



Um conjunto de faiança de Miragaia

Os belos azuis, profundos, ressaltando do branco do fundo, são uma das marcas que identificam a produção da fábrica de Miragaia, com o motivo País. Aprendi a apreciar esta faiança através dos excelentes textos, publicados nos seus blogs, da Maria Andrade e do Luís Montalvão, 
Iniciei este conjunto com uma loucura. A primeira peça, adquirida a um particular, resultou de uma desejo momentâneo e de uma vontade irresistível de posse. As outras, já mais acessíveis e com valores razoáveis, foram compradas em leilão. Agrupadas, enriquecem a arca, resultando num conjunto harmonioso.
João da Rocha in "Fábrica de louça de Miragaia", pág.5

No ano de 1775, a fábrica de Miragaia foi fundada por João da Rocha e seu sobrinho João Bento da Rocha, nas traseiras da igreja de Miragaia, estendendo-se, pelas escarpas e adoptando uma edificação em patamares.
Beneficiou da proximidade das margens  do rio Douro que permitia a chegada das matérias-primas, essenciais para a sua produção e um rápido escoamento das peças para o Brasil e África.
Gravura de Raimundo Joaquim da Costa, Colecção MNSR
O motivo conhecido pela designação País, vive unicamente dos azuis e branco. A qualidade destas cores imortalizou-se e das peças decoradas com estes tons diz-se que são "azul de Miragaia". Do livro de receitas da fábrica constam dezoito modos de produzir esta cor, havendo referência a vários tons de azul, destacando-se,  a receita nº 37 descrita como "receita de azul melhor de uso comum da fábrica"1. A sua composição continha óxido de cobalto, sal de tártaro e silicato de cobalto.


In "Fábrica de louça de Miragaia", pág:89


A prospeção arqueológica junto das fábricas tem contribuído para trazer luz a muitas das dúvidas que se colocavam quanto á atribuição de peças a determinados centros de fabrico, pois os vários fragmentos que se encontram in situ permitem obter algumas certezas. Também em Miragaia foi feita uma sondagem e colhidos vários elementos.
A importância das marcas existentes no tardoz das peças permite a certeza da sua produção. Quando não existe, as atribuições fazem-se tendo em conta critérios estilísticos "considerando a apreciável similitude das produções das diversas unidades fabris do Porto e Vila Nova de Gaia desde os finais do século XVIII e ao longo da centúria seguinte"2.

                                                In "Fábrica de louça de Miragaia", pág:101


 O motivo País vai derivar da faiança denominada Herculaneum Pottery, de Liverpool, criada por Ralph Mansfield. A influência inglesa torna-se predominante após a derrota de Napoleão Bonaparte. A louça produzida em Inglaterra entra em força na Europa trazendo, como novidade, a decoração pelo processo da estampilha. "Grande parte destas peças, por facilidade técnica, era decorada a azul e utilizava como modelo as gravuras em voga na época, a maior parte das quais descreviam paisagens inglesas com as suas ruínas, castelos e casas apalaçadas que o romantismo tanto apreciava, ou então continuava a seguir as decorações orientais que nunca deixaram de influenciar as composições decorativas europeias"3.







As travessas, moldadas e de covo acentuado, bordo recortado, ambas de produção de Miragaia, apresentam uma decoração similar, marcadas por pequenas diferenças, patentes no completar da composição: base e vegetação envolvente. A aba mostra uma decoração de fundo esponjado, com flores e folhagem a azul e branco. As marcas, a letra gótica, uma delas ladeada de ramos de louro. 



In "Fábrica de louça de Miragaia", pág:220






 Dois pratos de serviços diversos. As marcas de fábrica também são diferenciadas. A da esquerda apresenta as iniciais M.P (Miragaia/Porto). Peças moldadas, circulares, de covo pouco acentuado e aba levemente levantada, com canelura junto ao bordo e recortado em forma de aletas. A aba mostra uma decoração de fundo esponjado, com flores e folhagem a azul e branco. As marcas, a letra gótica. Uma unicamente com as iniciais e outra com a expressão "Miragaia Porto", ladeada de ramos de louro. 



1- Isabel Maria Fernandes "Fábrica de louça de Miragaia", pág.55.
2- Manuela Ribeiro/ António Silva "Fábrica de louça de Miragaia", pág.85.
3- Margarida Rebelo Correia "Fábrica de louça de Miragaia", pág.101.





sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Monte Estoril: estância de veraneio








Num fim de tarde, em que a neblina começou a assentar arraiais sobre o mar, passear na marginal do Monte do Estoril tornou-se um  imperativo. A paisagem apresentou-se de um modo difuso, quase lembrando uma manhã fria de Inverno.  A placa indicativa, grafitada, evoca tempos mais recuados e os passeios de domingo com toda a família. 
Mas recordemos os primeiros passos do Monte Estoril como estância balnear da moda. A partir do altura em que a família real  escolheu Cascais como local de vilegiatura e os reis D. Luís e D. Carlos se instalaram no Palácio da Cidadela para gozarem os meses de Setembro e Outubro,  a corte e muitas famílias aristocratas os acompanharam. Era um local in. Convinha ver e ser visto. Edificaram-se Chalets exóticos, inspirados nos desenhos românticos e revivalistas franceses, suissos e ingleses. Também a rainha D. Maria Pia aqui adquiriu o seu palacete.

"Foi precisamente nas ruas sinuosas do Monte Estoril, mais sobretudo no seu lugar mais alto -o Monte Palmela -, que se assistiu a um grande surto construtivo, que teve os seus primórdios no ano de 1889 com  a criação da Companhia do Monte Estoril e a sua ambição de tornar aquele local numa estância balnear de luxo, equiparada às que então se viam no sul da França"1 que se construíram, pelo risco do arquitecto Rafael Duarte de Melo,  na primeira década de novecentos, numerosas casas de veraneio, desta vez para a burguesia citadina lisboeta, que pretendia emular a aristocracia. Os seus projectos demonstram homogeneidade pelo recurso constante à arte do ferro forjado, dos azulejos e, de um modo geral, às características do gosto reinante na época em reporte, o neo-românico.
As faixas azulejares com que adornava as fachadas das casas que projectou, deram ao local "um novo gosto por uma decoração elaborada, em que se tirava partido da utilização de azulejos Arte Nova"2, numa simbiose perfeita com os restantes materiais usados na edificação e os pequenos jardins, bem organizados, seguindo o modelo francês.




Grande parte das casas projectadas pelo arquitecto Rafael Duarte de Melo foram edificadas a pedido de Manuel Ferreira dos Santos, um "brasileiro" de grosso cabedal, que quis investir na promissora zona do Monte Estoril. As obras de Rafael Duarte de Melo são de fácil identificação "pelo coroamento do corpo central, pela entrada alpendrada, pelas colunas com os seus graciosos capitéis, os gradeamentos de varandas, portões e muros com ondulantes trabalhos de ferro forjado, pelo uso da pedra trabalhada a emoldurar as janelas"3 e ainda hoje subsistem, como é o caso das vilas Malvina e Laura.










A Vila Malvina, encomendada por Manuel Ferreira dos Santos para sua residência de Verão, apesar de ter sido modernizada, exteriormente não apresenta grandes alterações relativamente ao projecto inicial. É de salientar o característico alpendre, assinalando a entrada principal, antecedido de uma escadaria. São também da sua traça grandes janelões ornamentados com frisos de azulejos ou trabalhos em pedra, bem como o uso de estruturas em ferro forjado, como é o caso da pérgola.





Também, como era frequente na época, recorreu às faixas azulejares, policromáticas, em estilo Arte Nova, distribuídas pela construção, num claro contraste com o branco da alvenaria. Aplicados tanto na fachada principal, como nas laterais, são "exemplares artísticos de excelente qualidade"4, evidenciando  temáticas de inspiração floral e vegetalista.







 O projecto da Vila Laura, localizada na Avenida Sanfré, onde ocupa um lugar predominante, pela sua cor e elegância. O edifício, de autoria de Rafael Duarte de Melo, foi encomendado por Eduardo Esteves de Freitas. A revista "A Architectura Portuguesa" no ano de 1911, assinala a sua localização como um dos locais mais aprazíveis da estância balnear do Estoril.




 Mais uma vez, todo o conjunto mostra as características comuns ao traço do seu autor: "superfície exterior inferiormente revestida com aparelho de tipo ciclópico, sendo o restante a reboco pintado, onde se exibem frisos decorativos azulejares de temática vegetalista e figurativa; a típica entrada principal alpendrada, que resguarda uma escadaria de acesso à porta; o uso de pequenos colunelos de capitéis com volutas e os janelões com guarda em ferro forjado"5.




 As bandas azulejares, de desenhos tipicamente Arte Nova, sobressaem no conjunto arquitectónico pela sua qualidade pictórica e técnica. São de autoria de Joaquim Luís Cardoso, pintor de azulejos da Fábrica do Desterro, sendo considerado, na sua época, um dos "doze pintores mais destacados, que se ocuparam do azulejo nos inícios do século XX"6.




1/2/3/4/5/6 - Rita Fonseca "A Arquitectura de Rafael Duarte de Melo  no Monte Estoril", Revista Museu, IV Série, Nº 13, 2004, pág.121, 132, 143, 153, 158.











quarta-feira, 7 de junho de 2017

Uma graça de Nossa Senhora de Campos


Este ex-voto, de dimensões bastante grandes, representa uma cena que, tudo leva a crer, ser no interior de um convento, dada a presença das religiosas e da miraculada ser Madre Maria Perpétua.
Representam sinais de fé e diálogo com Deus. Estes pequenos quadros pintados nos mais diversos suportes - madeira, tela, folha de lata, cartão, papel - transmitem ingenuamente a cor local,  retratando cenas de  interiores onde, genericamente, se podem observar camas, mais ou menos requintadas, dado que os pedidos eram, maioritariamente, derivados de situações de doença. Traduzem as graças atendidas por intercessão daqueles a quem eram dirigidas. Pintados por artistas populares, são provas vivas da nossa riqueza etnográfica e reconstituem, de forma ingénua, e algo naif, o ambiente onde o milagre se produziu.
A  proveniência deste ex-voto poderá ser atribuída, com alguma reserva, ao Convento de Nossa Senhora de Campos de Sandelgas, dado que  na legenda vem referida Nossa Senhora de Campos, nesse mesmo convento venerada..
Situa-se em Sandelgas, no concelho de Montemor-o-Velho, distrito de Coimbra. Teve a sua origem numa pequena ermida erigida no mesmo local, em 1415, consagrada a Nossa Senhora de Campos. A viúva de D. João de Castro, D. Isabel de Castro, juntamente com mais cinco senhoras, fundou um convento junto da mesma.
Devido às recorrentes cheias do Mondego, que tornavam as instalações conventuais inabitáveis, em 1691, as freiras foram transferidas para o novo convento, consigo transportando unicamente a Cruz de Cristo e uma imagem de Nossa Senhora de Campos.
Com a extinção das ordens religiosas em 1834, as freiras de Sandelgas ingressaram no convento de Santa Clara de Coimbra. Os edifícios foram vendidos em hasta pública, no ano de 1865 e comprados pela família Moura-Gusmão, que ainda mantém a sua propriedade.
Nossa Senhora de Campos
O espaço cénico revela, à esquerda, a imagem de Nossa Senhora de Campos, numa posição elevada, suportada por uma nuvem, simbolizando a representação teatral do sagrado.
A estrutura pictórica dos quadrinhos apresenta dois espaços distintos, mas que se completam: o sagrado e o profano. As duas áreas são bem definidas. O sagrado, no campo superior do quadro ou centralmente, criando um jogo de simetrias, formado pela representação da figura invocada, com os atributos que a individualizam. Geralmente, a imagem invocada, surge envolta numa nuvem, causando um efeito de teatralidade para a apresentação do sagrado.

No entanto, as cenas mais comummente fixadas, são cenas de interiores, geralmente em lugar de destaque, uma cama onde está representado aquele/a por quem se pede.
Muitas vezes, mais personagens surgem no espaço cénico: familiares e domésticos, o padre, o médico, todos eles numa acção conjugada e colectiva de interceder junto da imagem divina no sentido de pedir a realização de uma graça, tantas vezes, quase já in extremis.


“M. Q. FES N. S. DECAMPOS A Mb. PERPETUA Mª SOLDANDOLHE HVMA ARTERIA DE HV. PEITO EM QVE PADECIA HV GRªNDE ACHAQVE EAPLICANDOLHE OMANTO DA Sª. PAROU OSANGVE ECONTINUARAM ASMILHORAS ANNO D 1726”.


Também parte integrante da pintura é a legenda, que conjuga os dois espaços: o sagrado e o profano.
Nela estão inscritos : identificação do beneficiário, localidade de origem, motivo do pedido, entidade a quem se pede a graça e a data.
Transmissoras de uma mensagem, cumprem a missão de informar, agradecendo  a graça recebida e divulgando, numa função catequética e de ensinamento, através da exposição nas paredes das igrejas, capelas e santuários, pretendendo que todos dela beneficiassem, exortando-os a proceder do mesmo modo
A legenda, escrita numa linguagem mais erudita, identifica a entidade cuja protecção se celebra -Nossa Senhora de Campos - , a beneficiária da graça concedida - Madre Perpétua Maria -, o motivo do agradecimento – uma artéria que padecia um grande achaque – o modo como o milagre se concretizou – protecção sob o manto da Senhora – e, no fim,  a data - 1726.
Resta-me agradecer ao seu proprietário o ter permitido a sua divulgação. Bem haja.








domingo, 14 de maio de 2017

Uma arca esgrafitada











Uma pequena e elegante arca esgrafitada que, apesar de lhe faltar a base,que lhe confere um pouco de elevação, fazendo-a sobressair e ganhar estatura relativamente ao solo, não desmerece face a outras congéneres.
As arcas esgrafitadas, durante tanto tempo atribuídas a produção estrangeira, foram executadas e produzidas de forma ímpar nas ilhas açorianas, com uma provável influência flamenga, dada a colonização de algumas das ilhas por colonos oriundos da Flandres.
A localização atlântica das ilhas estabelecia a ligação entre dois mundos e proporcionava conhecimentos de outras civilizações que, depois de uma “reflexão adequada e utilizando as madeiras dominantes, nascia a própria arte local, matizada de novas soluções, algumas delas ingénuas, mas sempre nobres e de espírito elevado”1.
Resultam de vivências fortes e de adaptações às características geoespaciais, marcadas pela insularidade.

Pelo valor intrínseco que possuem, pelo interesse cultural e artístico, pela raridade, pela grande época, pela sua beleza e carácter sociológico são alvo de interesse de  estudiosos, coleccionadores, antiquários e também de pessoas em geral.
As arcas são o modelo mais usual e comum do mobiliário, não só pelo seu carácter prático e funcional, mas também pelo destino que lhes era dado. Eram peças cruciais do mobiliário de uma casa tradicional.
Apresentam como principais características serem desprovidas de molduras, exibindo malhetes de canto, alguns bastante trabalhados levando quase a concluir que os “artesãos que os executaram (tiveram) mais interesse em que constituíssem um elemento de decoração demonstrativo do seu virtuosismo, do que correntio sistema de emsamblagem”2.
De forma paralelipipédica, mostram o tampo justaposto à estrutura para melhor funcionamento dos gonzos, excedendo lateralmente as ilhargas.




 Móveis de decoração incisa, também conhecidos por esgrafitados, vivem da ornamentação que é obtida por incisão ou pirogravura. As incisões eram preenchidas com uma massa escurecida com noz de galha.
Datadas dos séculos XVI e XVII, foram exportadas com sucesso por toda a Europa, encontrando-se muitos exemplares na região de Manchester e também em Espanha e na Flandres..
O cedro, madeira na qual eram produzidas, existia em grande abundância nas ilhas açorianas.
Verifica-se, pois, que em Angra a indústria produtora de móveis estava florescente com a consequente exportação. Daí a “relativa frequência com que se encontra este tipo de trastes no mercado internacional” 3.
O esquema organizativo da decoração está dividido em três compartimentos. O central, e os laterais, maiores e simétricos, como simétrica é a ornamentação que revelam: dois leões rompantes, com a cauda enrolada entre motivos vegetalistas. Centralmente uma composição floral.
Apesar de, durante parte do século XX, terem despertado pouca atenção entre o meio do antiquariato, alguns exemplares integravam colecções particulares e o acervo de instituições públicas, tais como o Museu Nacional de Arte Antiga, o Museu da Fundação Ricardo Espírito Santo, o Museu do Caramulo e o Museu da Quinta das Cruzes, no Funchal.

MNAA Nº Inv.1662 Mov
1 - FORJAZ, Jorge Pamplona - “Nota preambular”in MARTINS, Francisco Ernesto de Oliveira "O desconhecido mobiliário açoreano do século de ouro”.

2/3 - FELGUEIRAS, José J. G. Jordão - “O desconhecido mobiliário açoreano do século de ouro”. Lisboa, 2002, Revista Museu IV série, nº 11, Círculo Dr.José de Figueiredo, pág.78 e 83.





terça-feira, 18 de abril de 2017

Meninos Jesus de Malines


Um conjunto de Meninos Jesus de Malines  reunidos para celebrar o 4º aniversário do blog. A sua graciosidade e o seu ar marcadamente flamengo, enriquecem este post. Sempre gostei de arte sacra mais simples, despojada da grandiloquência das imagens do século XVIII. 
Com dimensões variadas, entre os 17 cm e 37 cm, todos nos abençoam com gestos gráceis e cheios de significado. O facto de, dada a sua longevidade no tempo, terem perdido partes do corpo, principalmente aquelas que se apresentavam mais frágeis, como as mãos e braços, não lhes tira a sua beleza. Cativam-me e sempre me hão-de cativar. Esta classe de imagens, de vulto pleno, de feição naturalista, normalmente colocados em posição destacada, nos oratórios privados, particulares ou conventuais, apresentam, no esculpido, características particulares.


Nas oficinas da Flandres, principalmente em Malines, Bruxelas e Antuérpia, eram executadas estas imagens, algumas com um trabalho mais cuidado, talvez peças de encomenda, outras mais pequenas, com uma vocação mais comercializável. Antes de entrarem no circuito comercial, eram sujeitas a exames por parte dos representantes das Corporações de Escultores e Pintores, que lhes apunham as suas marcas e punções, abonando, assim, a "qualidade do material e a perfeição artística das obras"1.
Apreciadas em toda a Europa, eram transportadas nos porões das naus, na torna viagem. Entraram às centenas em Portugal e Espanha e, por extensão, nas respectivas regiões insulares.









 As características flamengas que os artesãos conferiram às suas feições são evidentes: ar risonho, uma expressão optimista, fronte ampla, rosto oval, olhos amendoados e um leve sorriso nos lábios.






Outra das características específicas desta produção é o tratamento dado aos cabelos. Dois caracóis frontais seguidos de uma cabeleira, também ela encaracolada, formando uma mandorla em redor da cabeça.






1- Bernardo Ferrão de Tavares e Távora- "Imagens de Malines", colecção Museu Nacional de Arte Antiga. Lisboa, 1976, pág.26.


domingo, 19 de março de 2017

Uma peça de produção da Fábrica das Devezas





Esta coluna, produzida na Fábrica das Devesas, em Gaia, foi leiloada pela Cabral de Moncada, no seu último leilão. Curiosa, pedi autorização para fotografar a peça. Não pode brilhar em todo o seu esplendor, pois o local onde se encontrava não era o mais favorável. No entanto, não deixam de ser realçadas, quer a sua elegância, quer a riqueza da sua decoração.
Colocadas lado a lado, as duas imagens - ao vivo e no catálogo - corroboram a afirmação anterior.
António  Almeida da Costa, a partir de 1870, tornou-se no único gerente da fábrica. O controle de todo "o processo produtivo, desde a obtenção das matérias-primas e seu transporte, até à produção e distribuição dos produtos"1permitiu-lhe alcançar um grande sucesso comercial, a que se aliava a boa localização da fábrica, bem como uma esclarecida estratégia publicitária do empresário.
No Catálogo da Fábrica das Devesas de 1910, sob o número 474, encontramos a coluna ultimamente leiloada. É descrita como uma coluna ornada, com o custo de 2$000 reis se for fosca ou de 3$000, se for vidrada.





Apresenta uma decoração clássica. Base com uma cercadura de folhagem, provavelmente de folhas de acanto. Segue-se uma parte da coluna ondulada. Novamente, uma ornamentação floral, que estabelece a separação com o restante fuste, liso. É encimado por uma secção rectangular, que servia para a colocação de outra peça.
Mostra uma marca relevada, mas com desgaste, pelo que é difícil identificar as palavras.


Também  referenciadas como de fabrico das Devesas, um par de colunas leiloadas na Cabral de Moncada, em Dezembro de 2015. Na mesma página do Catálogo de 1910 pode observar-se o modelo, com o nº470. Vem com a designação de "Oliveira Monteiro" e o custo é de 3$500 reis - fosca - e 5$000 - vidrada -, respectivamente.






Ainda, seguindo na linha de publicitação dos seus produtos, António Almeida da Costa, começou " as exibições públicas de novos artefactos, quer no Porto, quer na própria fábrica, sobretudo em épocas que se sabia ser de grande afluência de pessoas à estação ferroviária das Devesas"2.

Também, como forma de divulgar os seus produtos participou em exposições  nacionais e internacionais. Foi o caso, no ano de 1882, da Exposição de Cerâmica no Palácio de Cristal do Porto. A afluência foi grande, como nos demonstra a imagem publicada no nº147, da Revista "O Ocidente".


 




1/2 -Francisco Queiroz "Os Catálogos da Fábrica das Devesas". Chiado Editora, 2016, pg. 21 e 22.